Sacramento da Reconciliação: construir sobre as ruínas

Convidado a dirigir-vos algumas palavras neste nosso dia penitencial, faço-o com profundo respeito. Faço-o com espírito fraternal, buscando refletir convosco e preparar-nos juntos para nos aproximar do trono da graça e receber o oportuno auxílio da misericórdia (cf. Hb 4,16). Faço-o na certeza de que sou o menor entre vós, mas mais certo ainda de que o faço pelo poder da graça divina, que capacita os débeis para o exercício da pregação. Faço-o, por fim, movido pelo espírito de colaboração presbiteral, desejando ajudar o nosso corpo sacerdotal naquilo que seja a edificação e crescimento comuns.

Para prepararmos para a recepção do dom do perdão, gostaria de meditar três pontos da Carta Encíclica Dilexit nos1 sobre o amor humano e divino do Sagrado Coração de Jesus, que nos presenteou o Papa Francisco. No Evangelho a pouco proclamado Jesus nos chamou de amigos. É nessa condição que vos convido a imitar o Apóstolo São João e a vos recostar sobre o peito do Mestre para ouvir seu amoroso Coração. “‘Amou-nos’, diz São Paulo referindo-se a Cristo (Rm 8, 37), para nos ajudar a descobrir que nada ‘será capaz de separar-nos’ desse amor (Rm 8, 39). […] ‘Chamei-vos amigos’ (Jo 15, 15). O seu coração aberto precede-nos e espera-nos incondicionalmente, sem exigir qualquer pré-requisito para nos amar e oferecer a sua amizade: Ele nos amou primeiro (cf. 1 Jo 4, 10). Graças a Jesus, ‘conhecemos o amor que Deus nos tem, pois cremos nele’ (1 Jo 4, 16)” (DN, 1).

1. Regressar ao coração

Antes de qualquer coisa, precisamos regressar o coração. Urge que recuperemos a capacidade de sentir e de agir a partir do coração. “Neste mundo líquido, é necessário voltar a falar do coração; indicar onde cada pessoa, de qualquer classe e condição, faz a própria síntese; onde os seres concretos encontram a fonte e a raiz de todas as suas outras potências, convicções, paixões e escolhas” (DN, 9). Sem esse retorno ao essencial nossa vida e ministério se tornam locais ocos, que reverberam sons confusos e dispersos. Se cedermos à tentação atual de um estilo de vida artificialmente produzido, nosso peito será uma lata, e não o lugar do coração. “É necessário, portanto, recuperar a importância do coração quando nos acomete a tentação da superficialidade, a tentação de viver apressadamente, sem saber bem para quê; de nos tornarmos consumistas insaciáveis, escravos na engrenagem de um mercado que não se interessa pelo sentido de nossa existência” (DN, 2).

Cientes da necessidade de dar vida ao nosso ministério e dar significado à nossa vida, sugiro três pontos para nosso exame de consciência presbiteral:

1) Minha vida sacerdotal parte do coração? Vivo com prazer e sentimentos elevados o meu chamado?

2) Exerço o serviço do meu sacerdócio com coração? Isso implica gentiliza, caridade, paciência, compreensão… Sou para os meus irmãos e irmãs uma lembrança do Coração de Jesus ou uma máquina fria de produzir respostas religiosas?

3) Reconheço que meu coração deve coexistir com outros corações, em esforço de fraternidade e proximidade?

Estas questões abrem a possibilidade de muitas outras. A resposta para todas é o amor de Deus que se transforma em perdão. Esse perdão deve nos levar a produzir frutos. “É necessário que todas as ações sejam colocadas sob o ‘controle político’ do coração, que a agressividade e os desejos obsessivos sejam acalmados no bem maior que o coração lhes oferece e na força que ele tem contra os males; que a inteligência e a vontade sejam também postas a seu serviço, sentindo e saboreando as verdades, em vez de querer dominá-las, como algumas ciências tendem a fazer; que a vontade deseje o bem maior que o coração conhece, e que a imaginação e os sentimentos se deixem também moderar pelas batidas do coração” (DN, 14). Nosso sacerdócio nasceu do transbordamento de amor do Coração de Jesus. Para sermos bons sacerdotes precisamos voltar às fontes desse Coração Sagrado.

2. Coração concreto: gestos

Ao se falar de coração corre-se o risco de abstrações estéreis, distantes da realidade. O coração pode ser um mero artifício romantizante. O Papa Francisco apresenta o Coração de Jesus a partir de gestos. É coração concreto, verdadeiro, que bate, bobeia sangue, oxigena. É coração que ama de verdade, ama até o fim (Cf. Jo 13,1). “O modo como nos ama é algo que Cristo não quis nos explicar exaustivamente. Mostra-o em seus gestos. Observando-o, podemos descobrir como trata cada um de nós, mesmo que nos custe perceber isso” (DN,
33). O gesto mais significativo de Jesus é a proximidade. Nós, sacerdotes, somos – ou deveríamos ser – homens da proximidade. Temos muito a aprender com o Mestre Jesus. O Papa Francisco, por mais de uma vez, nos ensinou que o presbítero deve cultivar quatro proximidades: com Deus, com seu bispo, com seus irmãos presbíteros e com o povo. A lógica da proximidade, esclarece Francisco, permite ao sacerdote “quebrar todas as tentações de fechamento, de autojustificação e de fazer uma vida de ‘solteiro'”, porque o convida a apelar
para os outros “para encontrar o caminho que leva à verdade e à vida”. São quatro dimensões que nos permitem, conclui, “administrar as tensões e desequilíbrios com que temos que lidar todos os dias”, uma “boa escola para ‘jogar em campo aberto’, onde o sacerdote é chamado, sem medo, sem rigidez, sem reduzir ou empobrecer a missão”. Nesta antecâmara do perdão somos convidados a meditar se estamos nos empenhando nessas proximidades ou se tenho criado distâncias e barreiras… O gesto de aproximar nos fala de Jesus. Nosso ministério fala a partir dessa linguagem? Como praticamos a proximidade em nossa atividade pastoral?

3. A reparação: construir sobre as ruínas

Por fim, aproximar-nos do grande Sacramento da Misericórdia exige de nós uma atitude reparadora. “Faz parte deste espírito de reparação o bom hábito de pedir perdão aos irmãos, que revela uma enorme nobreza no meio da nossa fragilidade” (DN, 189). O Papa Francisco, retomando uma expressão de São João Paulo II, diz que esse caminho reparação, de restauração, deve ser feito “sobre as ruínas acumuladas pelo ódio e pela violência”, ou seja, reconstituir o que o pecado destruiu. Nossa missão sacerdotal é a de reconstruir pessoas, famílias, situações. Aquelas palavras oportunas que dizemos aos nossos penitentes, à guisa de aconselhamento, devem repercutir também em nós, para que sejamos capazes de sinceros propósitos de emenda e de boa vontade em promover o bem entre nós e entre nossos paroquianos. “Uma vez que o Senhor todo-poderoso, na sua liberdade divina, quis ter necessidade de nós, a reparação entende-se como a remoção dos obstáculos que colocamos à expansão do amor de Cristo do mundo, com as nossas faltas de confiança, gratidão e entrega” (DN, 194). Diante disso, temos sido reparadores? Nosso sacerdócio tem tentado restaurar pessoas e curar corações feridos? Temos buscado uma reconstrução pessoal, tentado ser homens íntegros? “Um coração humano que dá espaço ao amor de Cristo por meio de uma confiança total e o deixa expandir-se na sua própria vida, com o seu fogo, torna-se capaz de amar os outros como Cristo, tornando-se pequeno e próximo de todos” (DN, 203).

Conclusão

Agora, vamos nos aproximar do dom do perdão no Sacramento da Reconciliação. Certamente o faremos pensando nas batidas do Coração de Jesus que neste ato sacramental pulsa pela humanidade. Seja um momento renovador para o nosso ministério. Nesses dias administraremos este Sacramento por muitas vezes, mas agora seremos nós a nos beneficiar desse grande tesouro. O Cristo Jesus nos espera, na pessoa de um irmão no sacerdócio, para nos fazer entrar na intimidade de seu Coração e nos confidenciar: “Já não vos chamo servos, mas meus amigos” (Jo 15,15).

 

Texto: Padre Javé Domingos da Silva