A misericórdia salva o mundo

A fé cristã em Deus não parte de conceitos intelectuais puros, mas de uma experiência com Deus. Essa experiência, retratada na Sagrada Escritura, é a história da salvação vivida por pessoas e por todo um povo. Eis porque, para bem compreender nossa fé, é tão importante conhecer e compreender a Escritura.

Nossa fé cristã católica nos diz que a misericórdia é um dos atributos de Deus, embora esse conceito não apareça, como tal, nos Símbolos da nossa fé. Também outras religiões, como o Islamismo, reconhecem que Deus é misericordioso e clemente. A Deus convém a misericórdia. E Deus nos trata com misericórdia.

 

No entanto, isso nem sempre está claro no conceito geral que se tem de Deus. Com facilidade, contrapõe-se poder e misericórdia em Deus, como se esses dois atributos fossem excludentes; ou se opõe a justiça divina à sua misericórdia.

A fé cristã não permite essa contraposição. Deus é todo-poderoso e isso significa que também é onipotente no amor. Por isso, pode ser misericordioso, indo além da mera justiça. É próprio da justiça de Deus que ela seja aplicada com amor. E isso é a misericórdia divina, na concepção bíblica e da fé cristã.

O Povo de Deus, antes de Cristo, conheceu muitas vezes que Deus, embora castigando os culpados, para que se convertam e voltem ao bom caminho, é “misericordioso e clemente, paciente, rico em misericórdia e fiel, que conserva a sua misericórdia por mil gerações e perdoa culpas, rebeldias e pecados” (cf. Êx. 34,6-7).

A justiça de Deus, quando aplicada na forma de castigo, é sempre pedagógica e corretiva, para levar o homem a se rever; e, apenas percebe arrependimento e desejo de conversão do homem, Deus “se recorda de suas misericórdias” (cf Sl 25,6).

A certeza de que Deus é misericordioso é uma convicção sólida do Povo de Deus, formada numa experiência longamente vivida. Os profetas recordam muitas vezes que Deus, com misericórdia eterna, se compadece do seu povo (cf Is. 54,8); que suas misericórdias não têm fim e se renovam todos os dias (cf Lm 3,22).

São Paulo usa muito esse conceito para referir-se a Deus, a quem chama de “Pai das misericórdias, Deus de toda consolação” (cf 2Cor 1,3). Deus é “rico em misericórdia”, pois nos amou quando éramos ainda pecadores e nem o conhecíamos (cf Ef, 2,4-5). O próprio Paulo reconhece ter experimentado a misericórdia de Deus por meio de Cristo Jesus, apesar de ter sido blasfemo e perseguidor de Cristo (cf 1Tm 1,13.16).

Jesus Cristo nos dá a conhecer ainda mais claramente que Deus é misericordioso; ao desaprovar a religiosidade formal dos fariseus e dos mestres da Lei, que o criticavam porque acolhia os publicanos e comia com eles, Jesus lhes recorda as palavras de Isaías: “misericórdia eu quero, e não holocaustos” (cf Mt 9,13).

Semelhante contexto motiva Jesus, no evangelho de São Lucas, a contar as “parábolas da misericórdia” (cf Lc 15): Deus não fica feliz quando o homem se perde e sai à sua procura, até encontrá-lo; e o céu faz festa por um pecador que faz penitência mais que por 99 justos, que não têm necessidade de penitência.

O pai da parábola do “filho pródigo” retrata bem o Deus misericordioso, que Jesus dá a conhecer: embora respeite e leve a sério as escolhas livres de seus filhos, mesmo quando o rejeitam e abandonam, Deus fica esperando “de braços abertos” que voltem a ele novamente, pronto para acolhê-los. E faz festa por causa do filho “que estava morto e tornou à vida; estava perdido e foi encontrado” (Lc 15,32).

“Crer em Deus” significa crer no Deus de infinita misericórdia, que tem medidas de justiça muito mais largas que as nossas. Deus salva o mundo por sua misericórdia. Por isso, nossa fé está relacionada imediatamente com a esperança. Deus não nos trata conforme a mesquinhez de nossos pecados, mas conforme a abundância de suas misericórdias.

Texto do Cardeal Odilo Pedro Scherer, Arcebispo de São Paulo – A12