Os dias de Semana Santa com suas celebrações religiosas são marcados fortemente pela cultura da região mineira, em que estão presentes as tradições populares transmitidas pelos portugueses na colonização do Brasil. No entanto, muito além do que as procissões piedosas e o acompanhamento dos Passos de Jesus a caminho do Calvário nas Via-Sacra, destaca-se essencialmente a grande celebração pascal da paixão, morte e ressurreição de Jesus. O ápice litúrgico dessa grande celebração é o Tríduo Pascal, que envolve três momentos de um mistério em uma única celebração, começando na Ceia Pascal da Quinta-feira Santa, passando pelo sóbrio rito da Adoração da Cruz e culminando na Vigília Pascal, “a mãe de todas as vigílias”. O que significa esse rito da Páscoa?
A Páscoa judaica
Páscoa provém da palavra hebraica pesach, que indica a ação de passagem, e tem a sua origem no Antigo Testamento, com dois significados diversos. O primeiro deles é o teológico, pois indica a ação de Deus que “passa sobre”, Deus é o protagonista que toma iniciativa. A Páscoa, assim, comemora a passagem de Deus, com caráter ritual e sacrifical, em que o momento central é a imolação do cordeiro no templo e a sua consumação em família na noite seguinte, durante a ceia pascal. Deus passa, e nas casas em que os portais estão banhados com o sangue do cordeiro imolado Ele protege, enquanto golpeia as dos seus inimigos.
“Quando vossos filhos perguntarem: ‘Que rito é este?’, respondereis: ‘É o sacrifício da Páscoa para Iahweh, que passou sobre as casas dos israelitas no Egito, quando feriu os egípcios, mas livrou as nossas casas.’” Êx 12,26-27.
O segundo significado da Páscoa encontrado nas Sagradas Escrituras é antropológico, porque a atenção se desloca para a saída do Egito que é entendida como a passagem da escravidão para a liberdade. Essa interpretação centrada no homem mostra que o povo é quem passa e é salvo, faz a experiência do êxodo para receber a lei no Sinai. A Páscoa, assim, recebe o significado da passagem da escravidão para a liberdade, da morta para a vida, dos vícios para a virtude. Os hebreus são aqueles que como peregrinos sai da terra da idolatria para celebrar a verdadeira Páscoa ao Único Senhor na terra prometida.
“Observa o mês de Nisan, celebrando uma Páscoa para o Senhor teu Deus, porque foi numa noite do mês de Nisan que o Senhor teu Deus te fez sair do Egito.” Dt 16,1.
A Páscoa cristã
Olhar para as raízes bíblicas do Antigo Testamento ajuda a compreender o mistério celebrado no Tríduo Pascal cristão. Na Igreja católica também se assume aquelas duas perspectivas, mas agora reveladas pela paixão, morte e ressurreição de Cristo, o enviado de Deus Pai. O evento da imolação de Cristo na cruz é a realização de todas as esperanças contidas na antiga Páscoa. Agora é Cristo que se revela à humanidade pela encarnação e através de sua entrega livre à Cruz resgata a salvação para a humanidade.
Ora, Jesus Cristo é o próprio Deus que visita, que passa pelo povo, anunciando seu Reino de salvação e de redenção e estabelecendo no mundo o ensinamento da fé. Cristo é Deus que vem para cumprir a Nova e Eterna Aliança, cumprimento perfeito da mesma aliança que Deus estabelece com Israel no Antigo Testamento. Cristo é o cordeiro inocente levado ao matadouro por causa de nossos pecados e oferece ao Pai o sacrifício perfeito, capaz de pagar o resgate pela culpa obtida pela má ação humana.
“Quando, pois, este ser corruptível tiver revestido a incorruptibilidade e este ser mortal tiver revestido a imortalidade, então cumprir-se-á a palavra da Escritura: A morte foi absolvida na vitória. Morte, onde está a tua vitória? Morte, onde está teu aguilhão?” 1Cor 15,54-55.
A Páscoa é, portanto, o mistério central de nossa fé, pois nela celebramos a nossa redenção definitiva da morte provinda do pecado para a vida da graça conquistada por Jesus Cristo na Cruz. Se o pecado no jardim no Éden consistiu em um início livre pela vontade do homem contra Deus, no Getsêmani a obediência de Jesus ao Pai demonstra o retorno do homem ao plano divino. Assim nos afirma São Paulo na sua carta aos Romanos: “Como pela desobediência de um só, muitos se tornaram pecadores, assim também, pela obediência de um só, muitos se tornarão justos” Rm 5,19.
Acreditamos, por isso, no profundo mistério da vontade de Deus de remir a humanidade, ofertando a ela pela bondade de Seu amor, a salvação e a promessa de um Reino futuro. Ainda, entendemos que paixão, morte e ressurreição de Jesus se renovam a cada dia na Igreja pela celebração da Santa Missa. Mesmo acontecida uma única vez na história, é confessada e celebrada com a maior verdade.
Cabe a nós exercer a Páscoa do Senhor para alcançar a redenção. O sacrifício feito pelo Cristo não nos isenta da ação confiada em Deus e da vivência eclesial da fé. Devemos fazer penitência e orações, celebrar a Páscoa como nos ensina a Santa Mãe Igreja e colaborar no plano divino da salvação, que veio a nós pela redenção de Cristo na cruz. Assim como o povo hebreu atravessou o mar vermelho e realizou o êxodo rumo à terra prometida, precisamos como povo de Deus trilhar o êxodo da vida rumo à Jerusalém celeste, onde viveremos para sempre à imagem de Cristo Ressuscitado.
Esta relação entre história e liturgia, evento e sacramento é por nós perpetuada na Vigília Pascal, quando proclamamos, renovando o canto da Igreja: “Nós estávamos lá, naquela noite!”. Que a graça de Deus nos auxilie a exclamar, participando do mistério da Páscoa, aquilo que os primeiros discípulos exclamaram como testemunhas da ressurreição: “Vimos o Senhor!”.
“Sou eu – diz o Cristo.
Sou eu que destruí a morte,
que triunfei sobre o inimigo,
que elevei o homem às alturas dos céus.
Eia, pois, vinde vós todas as estirpes humanas
imersas nos pecados.
Recebei a remissão dos pecados.
Sou eu, de fato, a vossa remissão;
sou eu a Páscoa da salvação,
eu, o Cordeiro imolado por vós,
eu, o vosso resgate,
eu, a vossa vida,
eu, a vossa ressurreição,
eu, a vossa luz,
eu, a vossa salvação,
eu, o vosso rei.
Eu vos mostrarei o Pai”. Melitão de Sardes