A história humana é marcada pela constante busca de sentido diante da dor e da esperança, dimensões que, embora distintas, se entrelaçam e compõem a trama de nossa existência. Como seres frágeis, mas também sedentos de plenitude, muitas vezes esbarramos em limites que nos desafiam a interpretar nossas feridas à luz do amor de Deus.
Um exemplo eloquente dessa dinâmica é o episódio do apóstolo Tomé, que se recusa a crer na Ressurreição do Senhor sem antes tocar Suas chagas (cf. Jo 20,25). Quando enfim Jesus se apresenta e o convida a colocar o dedo em Suas feridas, Tomé proclama: “Meu Senhor e meu Deus!” (Jo 20,28). Desse modo, o que parecia sinal de fraqueza se transforma em caminho de redenção e graça. O ato de “tocar as feridas” revela que Deus age justamente onde mais necessitamos de Sua presença. Acolher nossa vulnerabilidade, portanto, não é aceitar a derrota, mas abrir as portas para que o amor divino converta a dor em oportunidade de encontro e transformação.
A fé cristã nos convida a abraçar os paradoxos da vida, pois é neles que se revela o mistério de Deus, que supera toda lógica meramente humana. Hans Jonas, filósofo judeu, diz que a Palavra divina só é ouvida quando respondemos a ela. Muitas vezes, não percebemos a transição entre as margens das nossas seguranças para o “mar” da fé e da esperança; quando nos damos conta, já estamos imersos nele, assim como, na experiência amorosa, muitas vezes a pessoa não decide apaixonar-se, mas de repente reconhece que está apaixonada. Assim também acontece com a fé: não se trata de um cálculo racional, mas de um desabrochar surpreendente que invade o coração com medo, angústia, mas também com esperança e confiança.
Diante do Mistério divino, nosso comportamento talvez devesse se assemelhar mais ao de Maria, que se senta aos pés do Senhor para escutá-Lo, do que ao de Dalila, que tenta desvendar o segredo de Sansão sem a atitude de reverência. No encontro com Deus, não se trata de “forçar” o entendimento dos Seus desígnios, mas de acolhê-los com coração aberto e confiante. A fé não elimina os desafios, mas nos permite enfrentá-los com uma coragem que nasce da certeza de que não caminhamos sozinhos. Assim como Tomé, somos convidados a ultrapassar nossas incertezas e colocar o dedo nas chagas de Cristo, reconhecendo-O como Aquele que vence a morte e o pecado.
Essa dinâmica não implica fuga do real, mas um salto corajoso rumo àquilo que dá sentido à existência, mesmo em meio às dores. Quando abrimos o coração ao Mistério, encontramos um Deus que não remove magicamente nossos sofrimentos, mas caminha conosco na noite escura, transformando a nossa fragilidade em força. As feridas humanas, inicialmente vistas como obstáculos, podem converter-se em espaços de encontro com o Criador. Afinal, Jesus, ao assumir plenamente a condição humana, fez da cruz o maior sinal de amor. Ao mostrar Suas chagas aos discípulos, Ele não disfarçou a dor, mas a transfigurou em fonte de vida e redenção (cf. Jo 20,20).
Essa verdade nos interpela a olhar para nossas próprias feridas não como marcas de derrota, mas como lugares privilegiados para o toque de Deus. Conta-se uma história de São Martinho, grande místico, a quem Satanás teria aparecido disfarçado de Cristo. São Martinho desmascarou o impostor ao perguntar: “Onde estão as tuas feridas?”. Sem as marcas próprias do Salvador, o falsário se revelou. Essa narração enfatiza que nós somos herdeiros de um Deus que se deixou ferir; um Deus cujas marcas são sinal de amor e salvação, não de fraqueza. É difícil para nossa lógica entender que o Senhor escolheu a via da cruz, mas é justamente essa “lógica divina” que nos ajuda a reinterpretar o sofrimento.
O cristianismo nos ensina que, no itinerário espiritual, não há garantias de uma vida sem dores; há, porém, a promessa de que não estamos sós. Jesus prometeu o Espírito Santo como consolador e guia (cf. Jo 14,16), indicando que a esperança não depende de explicações racionais exaustivas, mas da confiança de que Deus caminha conosco. A Ressurreição de Cristo anuncia que o amor triunfa sobre a morte e que o sofrimento, por mais intenso que seja, não tem a última palavra.
Também por isso, não é possível “resolver” o paradoxo entre a bondade de Deus e a fragilidade humana por meio de teorias que tentem “explicar” Deus ou descartá-Lo. Esse paradoxo se vive na fé – e, como lembra Kierkegaard, a fé é um salto corajoso para o centro desse enigma, não a solução fácil que tudo encerra. São Paulo reforça essa verdade ao afirmar que “é na fraqueza que a força de Deus se manifesta” (2Cor 12,9). O poder divino não se revela pela eliminação das dores, mas pela graça que nos sustenta em meio a elas.
Tal compreensão nos convida a abandonar imagens distorcidas de Deus: nem uma divindade que obedece aos nossos caprichos, nem um ser distante e indiferente. Em Jesus, contemplamos o Deus solidário que se faz homem, assume nossa condição e transforma a cruz – símbolo de sofrimento – em caminho de salvação. Se abrirmos espaço para que Ele toque o nosso coração, perceberemos que até mesmo nossos sofrimentos podem se tornar passos de fé e esperança rumo à plenitude da vida.
Em síntese, a ferida humana e a esperança divina se encontram no mistério do amor de Deus, que nos transforma. Assim como Tomé precisou questionar sobre as chagas de Cristo, somos chamados a apresentar a Ele nossas próprias feridas, confiando que Seu toque pode curar e dar sentido àquilo que nos machuca. Não caminhamos sozinhos; o Senhor faz-se presente, ilumina nossos passos e renova nossas forças. Ele é mistério que não pode ser totalmente compreendido, mas que se deixa encontrar como Amor incondicional.
De fato, todo ato de se levantar contra o mal no mundo, em certo sentido, expressa um clamor a Deus, mesmo quando Ele permanece um “Deus desconhecido” aos olhos de muitos. Pois “deuses conhecidos” não são, na verdade, deuses: Deus é o mistério central de toda a realidade. Ele não é nossa posse, mas nossa esperança.
Diante de um mistério tão grandioso para ser explicado e tão simples para ser vivido, recordamos que Jesus abraçou os maiores paradoxos: sendo Deus, fez-Se homem; viveu para morrer e, ao morrer, doou-nos a vida. Ainda hoje, se morremos com Ele, com Ele viveremos. Ele vive, e, por isso, nossa esperança não é vã! Nesse encontro entre ferida e esperança, descobrimos o toque de Deus, que nos cura, restaura e revela a grandeza de um amor capaz de abraçar toda nossa fragilidade e transformá-la em fonte de vida nova.


Inspirado em um diálogo de Gandalf com Frodo no livro “Senhor dos Anéis” de J.R.R. Tolkien e adaptações de trechos do livro “Não sem esperança” de Tomás Halík.






