Com as cinzas em nossas cabeças, sem flores, sem aquele instrumental estrondoso, com a cor roxa nos paramentos, sem o Aleluia e o Glória, irrompe em nossa vida o tempo quaresmal. “Memento homo quia pulvis es et in pulverem reverteris” (cf. Gn 3,19) – a humanidade curva sua cabeça e recorda a sua condição, por vezes, realidade de pobreza e de morte. Mas, implora o perdão misericordioso de Deus para que seus sentidos possam celebrar o mistério pascal que se aproxima: com Cristo vencendo o pecado e a morte.
Só Deus pode fazer do nada – do pó – brotar a vida alegre e santa. Do santuário do coração de cada fiel a Igreja canta essa certeza em oração. É um canto de conversão que exige penitência, afim de que a ‘chama batismal brilhe novamente com intensidade’ (cf. canto “Senhor, tende compaixão” – Wallison Rodrigues). Pois, é na força do batismo que “os homens são inseridos no mistério pascal de Cristo, com ele mortos, sepultados, ressuscitados” (SC 6). Uma nova lógica se aproxima: de pecadores à santidade, de podres sepulturas à mensageiros do Ressuscitado.
A liturgia oferece orientações simples e bonitas para vivermos positivamente o tempo quaresmal: oração, esmola e jejum. Além da espiritualidade, a Igreja no Brasil aponta caminhos concretos de solidariedade e fraternidade a serem considerados, neste ano “os biomas brasileiros e a defesa da vida” – Campanha da Fraternidade (CF) 2017. “Cultivar e guardar a criação” (cf. Gn 2, 15), uma responsabilidade de todos. O povo de Deus é chamado a ver a realidade, julgar e agir, à luz da Palavra de Deus. Mas, por que uma CF iniciar em tempo de quaresma? Nosso foco não é a conversão, a santidade…?
Precisamos esclarecer alguns pontos: Antes de tudo o tempo quaresmal nos instiga à um autoconhecimento que, por vezes, exige sacrifício, renúncia, conversão… atitudes no caminho de quem encontrou com Cristo e quer conhecê-lo plenamente. Por isso, a CF não é uma campanha de quaresma. Inicia-se em tempo de quaresma, em tempo de silêncio e conversão, mas que terminará no final do ano litúrgico. A Campanha deseja ser uma ação concreta da evangelização – isso traz suas fortes consequências: como um prolongamento da Catequese (Escola da Fé) situada nos encontros , círculos de estudos, grupos de reflexão etc. Portanto, o seu lugar primeiro não é a Liturgia…
Mas, a dimensão celebrativa proposta nos subsídios da CF tem algo a ver com essa conversão? Acredito que as celebrações propostas pela Campanha supõem uma comunidade já evangelizada e catequizada, mas que ainda é peregrina e neste caminhar procura conformar sua vida à de Cristo. No entanto, este elemento “conversão” que se clama em tempo quaresmal, é diferente da conversão na Iniciação à Vida Cristã (essa supõe outros elementos: eleição, iluminação, purificação, exorcismos… sacramentos). O tempo de quaresma não é para essa “conversão inicial”, até porque para quem não é “convertido”, não tem diferença o tempo litúrgico em si… Participa da liturgia somente os que são fieis ou que já manifestaram sua conversão inicial.
De modo que, a CF só repercutirá na liturgia quaresmal quando as ações catequéticas e evangelizadoras forem intensas na comunidade eclesial, isto pode-se chamar de ‘testemunho’. Por que? A conversão, a priori, não são aos cortadores de madeira, aos pecuaristas… O convite à mudança de vida está dirigido a nós fieis e que também podemos ser cortadores, pecuaristas etc. Não somos os “bons homens” que gritamos com nossos cantos e orações para os outros mudarem de vida. Ao contrário, a campanha também propõe silêncio, meditação, inquietação… Conversão primeiro dentro da própria Igreja, a nós diáconos, padres, bispos, religiosos, ministros e leigos, que muitas vezes somos os primeiros a poluir, devastar, explorar… – O que nós cristãos estamos fazendo com a criação?
Preparemos e façamos experiência da misericórdia divina nesta quaresma, renasçamos do pó nesta Páscoa: sejamos testemunhas do Evangelho em nossas ações simples e concretas (CF) na realidade em que vivemos.
Texto: Diácono Wallison Rodrigues / Fonte: a12