O Papa Francisco, na recente Carta sobre o papel da literatura na educação, afirmou que “a literatura faz-nos aprender a tocar os corações […] Eis o ponto: a tarefa dos fiéis, e dos sacerdotes em particular, é precisamente a de ‘tocar’ o coração do homem contemporâneo para que se comova e se abra diante do anúncio do Senhor Jesus. Neste esforço, o contributo que a literatura e a poesia podem oferecer é de um valor inigualável” (nº 21). A mesma intuição do Santo Padre pode ser aplicada às letras de algumas músicas que, repletas de poesia e espírito de fé, quando acolhidas com atenção, podem despertar no coração realidades que, por meio de discursos expositivos, permaneceriam latentes.
É com esse propósito que, refletindo sobre a realidade da vocação e seu discernimento, nos propomos a rezar e analisar a música “Balada por um Reino”, do grande compositor, evangelizador e catequista Padre Zezinho SCJ. Nosso objetivo é peregrinar, junto ao sujeito da música interpretada por Padre Zezinho, nessa busca por um reino vislumbrado, metáfora que pode ser comparada à jornada vocacional, busca comum a todos os seres humanos que, impelidos pela fé, buscam compreender o sonho de Deus para suas vidas.
A BUSCA
- Por causa de um certo reino, estradas eu caminhei
Buscando, sem ter sossego, o reino que eu vislumbrei
Brilhava a Estrela Dalva e eu quase sem dormir,
buscando este certo reino e a lembrança dele a me perseguir!
A letra inicia-se mencionando um reino inominado, sem rosto, que se apresenta como uma meta, algo que impulsiona a vida, o caminho, a busca. É algo vislumbrado, sonhado, mas ainda indefinido. É por causa desse reino que o sujeito percorre estradas, vê seu coração inquieto, perde o sono e, mesmo tentando escapar, sente-se perseguido por esse ideal que insiste em bater à porta de sua existência.
A que se compara esse “certo” reino? Em uma perspectiva antropológica, esse reino pode representar o desejo de Deus inscrito no coração humano (cf. CIC, n. 27), um anseio por um amor que não passa, uma alegria e realização que não se esgotam com o tempo. Sob uma ótica vocacional, que é o que nos interessa, ele pode ser entendido também como a busca pela compreensão da vocação pessoal: “Como posso servir melhor e ser mais útil ao mundo e à Igreja? Qual é o meu lugar nesta terra? O que eu poderia oferecer à sociedade?” (Christus vivit, 285).
Essa busca, por envolver escolhas e possibilidades, nos angustia. A angústia, por vezes, é companheira no discernimento. Como saber se faremos a escolha certa? Será que conseguiremos corresponder às exigências desse caminho? Qual caminho “tem mais coração” para a nossa vida? Somos capazes de assumir as renúncias necessárias, de abrir mão de certas convivências, seguranças e relações? Apesar de todos esses questionamentos, o coração vocacionado continua a caminhar, pois, no fundo, sente-se impelido por uma força interior que o leva a responder a um plano de amor que é maior que a nossa percepção: “Meu destino está seguro em vossas mãos!” (Sl 15, 5).
O compositor também menciona a Estrela Dalva brilhando no céu, o que pode nos remeter ao astro que guiava os Reis Magos em direção ao recém-nascido Rei Messias (cf. Mt 2,1-12). Essa estrela, que iluminava seu caminho incerto, continuava a brilhar, mesmo sem que o destino final estivesse claro. Perguntemo-nos, então: estamos atentos aos sinais luminosos de Deus? Será que conseguimos perceber as pequenas luzes que, tal como a Estrela, nos indicam o caminho em direção à vocação recebida como dom? Cada sinal é um lembrete da presença amorosa de Deus, que, por meio de inspirações e encontros, ilumina e guia nossa busca, revelando-se ao nosso coração no momento certo.
- AS ESCOLHAS
- Por causa daquele reino, mil vezes eu me enganei!
Tomando o caminho errado, errando quando acertei!
Chegava ao cair da tarde, e eu quase sem dormir,
buscando este certo reino e a lembrança dele a me perseguir!
O canto exclama algo próprio da humanidade: a possibilidade de errar nas escolhas. Muitas vezes, na expectativa de acertar, tomamos caminhos equivocados, pensando que eles trarão as respostas aos anseios do nosso eu profundo. No entanto, com o cair da tarde, símbolo do tempo e da vida que passam e não voltam, a busca por esse “certo reino,” o ideal vocacional do coração, continua a persegui-lo.
No caminho vocacional Deus não nos tolhe a liberdade de escolha. Um “sim” só é autêntico quando existe a possibilidade de dizer “não”. À proposta vocacional, Ele aguarda uma resposta. A vocação é dom, pois é presente gratuito de Deus, mas também é tarefa, uma cooperação humana para a concretização da vontade divina. Nessa dinâmica de resposta e escolhas, por vezes, podemos errar ou responder de forma insuficiente. Em certos momentos, fugimos da resposta, a retardamos, ou então não respondemos à altura de tão grandioso projeto. Como expressa a popular canção,: “Eu pensei muitas vezes calar e não dar nem resposta. Eu pensei na fuga, esconder-me, ir longe de Ti”.
Apesar dos “nãos”, das fugas e dos erros, a lembrança do reino insiste. É símbolo do chamado do Deus que sabe quem escolheu (cf. Mc 3,13), que reconhece a fragilidade daqueles que guardam o tesouro em vasos de barro (cf. 2 Cor 4,7) e que não desiste de quem Ele chama. Como canta o verso: “Mas tua força venceu, e ao final eu fiquei seduzida. É difícil agora viver sem saudade de Ti” (cf. Jr 20,7).
- O ENCONTRO
- Um filho de carpinteiro que veio de Nazaré,
mostrou-se tão verdadeiro, pôs vida na minha fé
Falava de um novo reino, de flores e de pardais,
de gente arrastando a rede, que eu tive sede da sua paz!
Nesta estrofe, parece que o certo reino, até então inominado, ganha um rosto: o do filho do carpinteiro que veio de Nazaré. Seu jeito de ser era autêntico e verdadeiro: Ele é a Verdade (cf. Jo 14, 16)! Sua palavra era diferente: ninguém jamais falou como este homem (cf. Jo 7,46). Ele falava de um reino novo que, neste mundo, parece ser pequeno como a semente de mostarda, mas que cresce e se torna a maior das hortaliças (cf. Mt 13,31-32). Falava dos lírios, dos pardais. Chamava pessoas que, no cotidiano da vida, trabalhavam arrastando as redes (cf. Mt 4,18-22). Seu jeito de ser despertava algo diferente no coração: um desejo de segui-Lo, de aprender com Ele, de ter os sentimentos de Seu coração (cf. Fl 2,5).
Aqui, fala-se do encontro pessoal com Cristo, origem de um autêntico despertar vocacional. “No início há um encontro, ou melhor, há o encontro com Jesus, que nos fala do Pai, dá-nos a conhecer o Seu amor” (Papa Francisco, 17/01/2021). Esse encontro, concretizado pelas vias insondáveis do mistério de Deus, é essencial: a fé se enche de vida na certeza de que não se caminha só e de que se é muito amado! O Papa Francisco faz considerações importantes sobre isso, afirmando: “É necessário esse encontro que muda a vida: muda o modo de ser, muda o modo de pensar, muda as relações que você tem com os irmãos, a disposição para acolher e perdoar, muda as escolhas que você faz na vida. Tudo muda se você realmente conheceu Jesus! Tudo muda” (Papa Francisco, 15 de setembro de 2024). Já fizemos esse encontro pessoal com Jesus Cristo? Permanecem vivos em nossa memória esses momentos?
- O CHAMADO
- O filho de carpinteiro falava de um mundo irmão;
De um Pai que era companheiro de amor e libertação
Lançou-me um olhar profundo, gelando o meu coração;
Depois me falou do mundo, e me deu o selo da vocação!
O Filho do Carpinteiro continua a apresentar a novidade de Sua Palavra. Ele fala de um Pai que acompanha, que oferece Seus dons preciosos com abundância, que quer que todos se reconheçam como filhos e, por conseguinte, como irmãos uns dos outros. Contudo, Ele não nos deixa indiferentes à dinâmica de Seu Reino: olha-nos com amor (cf. Mc 10,21), fala-nos da vida, dos sonhos de Deus, fixa-nos o olhar e nos convida: “Segue-Me” (cf. Mc 2,14). Imprime no mais profundo do ser a marca da vocação: o amor de uma vida doada!
Aqui, temos o dado do chamado. É iniciativa d’Ele: Ele chama os que quer, não segundo critérios humanos, mas a partir de Sua autonomia. “A primeira chamada de Deus é para a vida, com a qual Ele nos constitui como pessoas; é uma chamada individual, porque Deus não faz as coisas em série. Depois, Deus chama à fé e a fazer parte da Sua família, como filhos de Deus. Por fim, Deus nos chama a um estado particular de vida: para nos doarmos no caminho do matrimônio, no caminho do sacerdócio ou da vida consagrada. Estas são formas diferentes de cumprir o projeto de Deus, o projeto que Deus tem para cada um de nós, que é sempre um desígnio de amor. Deus chama sempre. E a maior alegria para cada crente é responder a esta chamada, oferecer todo o seu ser ao serviço de Deus e dos seus irmãos” (Papa Francisco, 17 de janeiro de 2021).
- A MISSÃO
- Agora quem me conhece, pergunta se eu encontrei
o reino que eu procurava, se é tudo o que eu desejei
E eu digo pensando nele: no meio de vós está
o reino que andais buscando, e quem tem amor compreenderá!
O homem, enfim, encontra o reino que procurava! E isso é percebido pelos outros: quando se encontra o reino, algo muda! Há um brilho no olhar, tal como o rosto de Moisés, que resplandecia após dialogar com o Senhor (cf. Ex 34,29-30). Vê-se que está diante de alguém realizado, que sabe que encontrou o tesouro escondido. Mas quem encontra esse reino não se torna egoísta; ao contrário, percebe que, no fundo, todos o buscam e, por isso, deve ser um facilitador, não um obstáculo, para que outros também o encontrem. A missão daquele que o encontrou é dizer: esse reino que procuras está perto de todos! E como encontrá-lo? Amando!
A vocação recebida não é um tesouro para ser enterrado, mas um bem a ser partilhado! Quem se reconhece como vocacionado deve estar disposto a percorrer os caminhos de Jesus, anunciando com a vida e com a Palavra o Reino que encontrou! Por isso, toda vocação é um sair de si para ir ao encontro do outro.
- A PERSEVERANÇA
- Jesus me ensinou de novo, as coisas que eu aprendi,
por isso eu amei meu povo e o Livro da Vida eu li
E em cada menina moça, em cada moço rapaz,
eu sonho que a minha gente será semente de eterna paz!
Na estrofe final da música, o cantor revela uma experiência de recomeço e de constante renovação: “Jesus me ensinou de novo, as coisas que eu aprendi”. Encontrar Jesus não é um evento único, mas uma jornada contínua de aprendizagem e de conversão, em que Ele nos ensina a viver conforme o Seu Reino. Esse processo nos ajusta, dia após dia, à Sua imagem, até que possamos refletir a estatura do homem perfeito, como nos ensina São Paulo (cf. Ef 4,13).
Jesus aponta dois caminhos essenciais para manter acesa essa experiência do encontro com Ele: o amor ao povo e a intimidade com o Livro da Vida, a Palavra de Deus. Como o próprio apóstolo Pedro declara, “Só tu tens palavras de vida eterna” (cf. Jo 6,68). Quem caminha com Cristo carrega consigo a missão de semear essa Palavra, plantando no coração de todos a semente do Reino, não apenas como uma promessa distante, mas como algo concreto, a ser vivido e compartilhado. Como ensina os mestres da fé: quem trabalha com a Palavra deve ser trabalhado também por ela.
Ao refletirmos sobre essa estrofe final, somos chamados a relembrar que toda busca vocacional, cada desafio, cada alegria e esforço, têm uma única razão de ser: é por causa de um certo Reino, o Reino de Jesus Cristo, que nos chama a participar de Sua obra de salvação e a levar Sua paz e Sua verdade ao mundo.







